Dia 21 de março Dia da Poesia


A palavra feita de palavras

21.03.16
José Luís Peixoto

Texto lido por Rui Mendes em homenagem à poesia e a José Régio, realizada pela Fundação INATEL em Portalegre, no dia 21 de março de 2016

Entre as letras, as vogais são como o vento. Havendo fôlego, um apode continuar para sempre, pode nunca terminar. Um e distorcido pela lonjura, repetido pelo eco, pode afastar-se e aproximar-se, pode ondular, dar voltas no ouvido, bumerangue ou avião de papel. Há uma forma de liberdade que só existe nas vogais.

Poesia é uma palavra que tem quatro vogais.

Como o mundo inteiro, como todos os momentos, como a própria vida, poesia é ordem e loucura. É ordem quando aquilo que nos faz mais falta é disciplina rigorosa, vírgulas que não poderiam pertencer a nenhum outro espaço, quebras de verso que deixam as batidas do coração na expectativa de um segundo, e é loucura quando esquecemos o essencial, quando precisamos de ser lembrados.

No entanto, como todos os termos, a palavra loucura é um paradoxo. Podemos acordar verdes, podemos falar com o silêncio, podemos agitar o céu, nada disso é loucura, estes são exemplos de realidade nítida. A maior loucura é acreditar que os dias existem no calendário, que 1+1 é sempre 2, que não vale a pena. Tudo vale a pena. Poesia é loucura contra a loucura. Como todos os termos, a palavra poesia é um paradoxo.

Poesia é uma palavra feita palavras e, como tal, é um paradoxo feito de paradoxos. No poema, como numa torre, todas as palavras são paradoxos em conflito consigo próprios e uns com os outros. Se tirarmos um tijolo, toda torre perderá força e, tarde ou cedo, cairá. É a tensão que os tijolos mantém entre si que permite o equilíbrio da torre. A poesia é uma torre sobre a vida e sobre a morte.

As estações e a intempérie castigam os tijolos, desgastam-nos. Ainda assim, há torres que duram séculos, esquecemos aqueles que as construíram. Também as palavras, apesar da erosão que as atinge, podem durar séculos. Temos a obrigação de acreditar que são eternas. Tudo o que está vivo tem a oportunidade de ser imortal.

No entanto, um monte de tijolos não é uma torre, um monte de palavras não é um poema. Chamem-se os engenheiros civis, por favor. Chegou o momento de considerar a ordem.

Nomear é uma forma sofisticada de organização. Quando os nomes assentam sobre algo, visível ou invisível, são como uma nova camada de realidade. Aquilo que é nomeado torna-se concreto como uma pedra na palma da mão, como uma pena entre o indicador e o polegar. Então, podemos encontrar o lugar certo para esses objetos. Não faltam maneiras de arquivá-los: peso, tamanho, sabor.

Se essa ordem fizer sentido transportará verdade.

A verdade é um espelho.

De certo modo, um poeta é um engenheiro civil que constrói espelhos. De certo modo, o poema é um espelho. Mas, de certo modo, o poema é qualquer coisa.

O poema é respirar, cada vez que inspiramos e expiramos, ar limpo a limpar-nos o sangue. O poema é fechar os olhos, existir num lugar sem luz e sem corpo. O poema é sorrir, reflexo que não decidimos e que chega aos outros, entre nós e os outros, milagre.

Precisamos muito de poesia. A nossa grande sorte é que a poesia está em todos os lugares onde estamos, como uma sombra do que vemos, pensamos, dizemos, somos. A poesia está no que fazemos bem e no que fazemos mal. O desafio é procurá-la, aceitá-la, aprender a sentir-lhe o gosto. Dessa maneira, a vida ganha um brilho que, afinal, sempre esteve lá.

Repito: quando os nomes assentam sobre algo, visível ou invisível, são como uma nova camada de realidade.

As palavras sabem tudo.

Dentro das palavras, as vogais são como o sopro de uma flauta, música humana. As consoantes também são necessárias, há uso para todas as matérias, mas é preciso ter muito cuidado com as suas arestas. Podem cortar: p! Ou, quando permitem a repetição, rrrr ouvvvv, as consoantes são máquinas, são motores. As vogais chegam em paz, diluem-se na cor, preenchem o ar. Como se não sentissem o peso, as vogais transportam a vida das palavras.

Poesia é uma palavra que tem quatro vogais.


José Luís Peixoto, texto lido por Rui Mendes em homenagem à poesia e a José Régio, realizada pela Fundação INATEL em Portalegre, no dia 21 de março de 2016

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